Eu quase chamei a atenção do homem, que o cravo na lapela do seu paletó estava caindo, mas acabei deixando pra lá. Magérrimo, narigão adunco, meio desajeitado. Mais tarde, quando desembarcou do táxi, notei que havia um outro cravo, vermelho como o da lapela, também a ponto de cair do bolso da calça do meu passageiro. Estranho.
O homem pediu que eu aguardasse, que não desligasse o taxímetro, iria continuar a corrida, precisava pegar um ônibus para Tramandaí que saia às 11hs. Seria questão de minutos, apenas um abraço fraterno na viúva, apresentar as condolências à família, assinar o livro de presença no velório. Retornaria em seguida. Tudo bem. Bateu a porta e subiu as escadas que davam acesso ao cemitério João XXIII, desajeitado, o cravo despencando do bolso. Enfim.
O homem começou a demorar. O taxímetro batendo, o tempo passando, o ônibus às 11 já era. Comecei a desconfiar. De repente, tudo pareceu meio estranho. Aquele homem cheirando mal, o paletó surrado, o cabelo emplastado... Comecei a achar que tava sofrendo um pênalti. O homem saira pelos fundos do cemitério e eu ali esperando. Já vi esse filme. Cacete! Resolvi conferir o velório.
O defunto parecia ser importante. A capela cheia, gente saindo pelo ladrão. Fui me esgueirando. Licença, licença. Nada do meu passageiro, nem paletó, nem cabelo engomado. Crescia em mim a sensação de que meu cliente picara a mula. O taxímetro, lá fora, batendo. Fui chegando mais pra dentro, a viúva à beira do caixão. Pensei em perguntar pra ela, sei lá, por um homem com nariz adunco, cabelo emplastado... Não tinha um nome sequer, seria ridículo: a mulher ali, sofrendo sua perda e eu enchendo seu saco. Eu já quase desistindo da busca, já aos pés do caixão, quando notei os cravos. Cravos vermelhos! Me aproximei. O caixão coberto por cravos vermelhos, apenas as mãos entrelaçadas, a parte de cima do paletó pra fora. O narigão! Adunco! O cabelo emplastado!!
Fiz o sinal da cruz e larguei fincado! Puta merda! O meu cliente estava morto! Desci as escadas do cemitério voando, as pernas bambas. Minha nossa!
Chegando ao táxi, quem estava parado na porta? Girando a cabeça, procurando por mim? Ele.
— Aí está o senhor! Vamos lá, estou atrasado, o próximo ônibus pra Tramandaí sai às 12 horas. O senhor está bem, taxista? Parece que viu um fantasma.
... Continua
A clínica psiquiátrica diminuiu a medicação, liberou o uso do celular. Posso, enfim, terminar de contar a história. Embarcamos no táxi. Destino rodoviária. Eu ainda impactado com a visão do caixão. O homem sentado às minhas costas, quieto — só o cheiro azedo denunciando sua presença. Meu ritmo cardíaco voltando ao normal, eu criando coragem pra puxar assunto. Na sinaleira da João Pessoa respirei fundo. Resolvi perguntar, afinal, quem era o homem no caixão. Um parente, um irmão gêmeo. Olhei pelo retrovisor, não vi o passageiro. O táxi parado no sinal. Virei-me para encarar o homem atrás de mim, mas já não havia ninguém comigo. O banco traseiro vazio. Apenas dois cravos vermelhos sobre o estofamento
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