domingo, 22 de julho de 2018

Saindo do dentista onde fui que consertar às pressas um dente quebrado. Embarco no táxi me perguntando quando vai acabar essa tremenda maré de azar que venho atravessando. Rodados poucos metros, uma passageira. Uma morena voluptuosa estilo Angelina Jolie. Opa! Parece que a sorte voltou a sorrir pra mim.
Pois a morena estava justamente acabando com o namorado, por ele acusá-la de beijar mal. Imagina! Aquela boca bem desenhada, aqueles lábios carnudos implorando que eu lhe provasse o contrário, e meus beiços anestesiados! dormentes! tortos! sensibilidade zero!
Mas eu não dou mesmo sorte.
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Sete da manhã, ainda escuro, Azenha, imediações do Condomínio Carandiru, um cara me faz sinal e eu paro por instinto. Moletom, capuz enfiado na cabeça, meio encolhido, ele entra pela porta da frente reclamando do frio. Já estou quase me arrependo de ter parado quando a porta de trás se abre e outro sujeito se joga no banco de trás do táxi. É quando eu tenho certeza de que serei assaltado. Já conheço esse modo de agir, separados para não assustar o taxista, foi assim nas outras vezes, agora já era. Meu coração dispara. Só rezar para encontrar uma viatura da polícia pelo caminho. Só que não.
O cara da frente dá o destino. Viaduto da João Pessoa. Ele conversa com o cara de trás, que está jogado no canto, boné enfiado na cara. O outro apenas resmunga, parece com sono. Do pouco que falam, entendo que o da frente tem uma dívida com o de trás, está indo pegar um dinheiro que com os moradores de rua que costumam dormir embaixo do viaduto para pagá-lo. É um péssimo plano e eu estou no meio dele. Meu coração aos poucos vai desacelerando, repasso o que devo fazer quando for anunciado o assaltado: desligar o táxi engrenado, puxar a chave da ignição, soltar o cinto, abrir a porta e correr. Lamento não ter ensaiado mais vezes esse procedimento de emergência.
Chegando no viaduto, o cara da frente diz que vai descer, pede que eu cruze a Perimetral e espere do outro lado com o parceiro do banco de trás. Antes de desembarcar ele avisa o outro que vai deixar o "berro", e joga um revólver sobre o painel do táxi. O estardalhaço da arma batendo contra o plástico acorda definitivamente o outro sujeito que parecia dormir. Aos olhos dos vagabundos, eu devo parecer um tiozinho inofensivo, cagado de medo, a ponto de tornar-me parte do plano. O pânico volta a incendiar meu peito!
Enquanto procuro um lugar para largar o táxi e sair correndo, um tiroteio começa embaixo do viaduto, gritaria, cachorro latindo, deu ruim! O sujeito do banco traseiro voa até o painel, pega a arma e sai em disparada em socorro ao companheiro, eu também disparo, cantando pneu, acelero, meio abaixado ao volante, não olho pra trás, coração na boca, puta que pariu!
O dia lentamente vai clareando, rodo até meu ponto enquanto a adrenalina dilui pelo corpo. Não espero encontrar nenhum passageiro. Aumento o ar quente e aproveito o momento de alívio. O taximetro ainda ligado marca mais de vinte Reais. Desligo. Que se dane. Hoje estou no lucro.
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Saindo pelo portão dos fundos do cemitério São Miguel e Almas, o homem ergue o braço em direção ao meu táxi. Toca pro Centro. Ele fica surpreso quando lhe apresento meu livro. Diz que também gostava de escrever, que publicou livros, inclusive. Opa! Grisalho, sobrancelhas grossas, o homem me lembrava mesmo alguém. Seu personagem mais conhecido teria sido um certo gaúcho metido a valente, a saga de uma família em meio a revoluções, coisa e tal. Achei interessante, mas para este taxista interessava outro tipo de informação.
- O senhor prefere ir pela Azenha ou Erico Verissimo?
- Vai por mim que é melhor.
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Chegando em frente ao cemitério da Vila Nova, a passageira me pede um favor:
- Eu volto para o Menino Deus no mesmo táxi se o senhor me fizer uma gentileza.
- Pois não.
- O senhor vá até a capela do cemitério, devem estar velando uma Vera.
- E?
- Eu detesto velórios, o senhor sabe?, não consigo, vim a corrida toda reunindo forças, Deus é testemunha, mas não dá.
- E a senhora quer o quê de mim?
- Que o senhor vá ali, é Vera o nome da falecida, assine o livro de presença em meu nome, Sílvia, ponha entre parenteses "vendedora Avon", eles vão saber que sou eu.
- Sílvia (vendedora Avon).
- Exato. Pode deixar o taximetro rodando, o senhor é muito gentil.
- Mais alguma coisa?
- O senhor se incomodaria de por a mão sobre a falecida e rezar um Pai Nosso?
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- Taxista, quanto o senhor faz até a entrada da avenida tal, quem sobe pela Oscar Pereira, ali naquele prédio novo.
- Deve dar uns R$20.
- Tenho 17 aqui, pode ser?
- Bora.
- Vou fazer uma faxina lá, um bico, sou cabeleireira/manicure/maquiadora, mas arrombaram o salão onde eu trabalho, a dona tá arrumando a porta, não vai abrir hoje.
- Bah. Essa maquiagem que tu usa, tu mesmo faz? Diferente, e o cabelão também, uau!
- É Amy Winehouse, o cabelo eu comprei, acabei de colocar, gostou, tio?
- legal.
- Eu trabalho na noite também, sabe? Acompanhante, me viro, correria. Mas a noite tá horrível, as meninas queimando o preço, fazendo programa por crack, muita droga. Prefiro bota um búzio, lê uma mão.
- Tu lê mão?
- Tarô, carta, arte cigana. Quer ler a mão, tio? Troco pela corrida.
- Não, não. Vou ficar com os 17 mesmo.
- Tudo bem.
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Agora, os rádios dos carros permitem que você conecte seu telefone a eles. A voz da pessoa que está falando com você sai pelos alto-falantes do carro. Genial! O problema é que alguns motoristas ainda não lidam bem com essa nova tecnologia. Atendem a ligação em um volume muito alto. Parei ao lado de um desses motoristas, agora há pouco. Mesmo com os vidros do táxi fechados, era possível ouvir perfeitamente o que a pessoa falava do outro lado da linha:
A GENTE PRECISA CONVERSAR, SÉRGIO, TUDO QUE ACONTECEU ENTRE NÓS NÃO PODE ACABAR ASSIM, SÉRGIO, FOI FORTE, ENTENDEU, FOI LINDO, SÉRGIO, A GENTE PRECISA CONVERSAR, QUERO QUE TU ME DIGA OLHANDO NOS MEUS OLHOS QUE TU NÃO ME AMA, SÉRGIO, O TUA FILHA PRECISA DE UMA MÃE, EU QUERO SER A PRESENÇA FEMININA NA VIDA DA TUA FILHA, ENTENDEU, QUERO SER A MÃE QUE ELA NÃO TEM, SÉRGIO, ENTENDEU, TU NÃO PODE SIMPLESMENTE ESQUECER TUDO QUE A GENTE VIVEU, ESQUECER DE MIM, DA TUA FILHA, ELA ME AMA, SÉRGIO, A GENTE PRECISA CONVERSAR.
O volume absurdo. Minha passageira, no banco de trás, também ouvindo, arriscou até um "pobre Sérgio". Curioso, cheguei o táxi uns centímetros mais pra frente, pois o Sérgio estava encoberto pela coluna do veículo. Juro: o Sérgio chorava.
TOMAR UM CAFÉ, SÉRGIO, SÓ UM CAFÉ, ENTENDE, VAMOS CONVERSAR, ENTENDEU, SÓ CONVERSAR, SÓ TOMAR UM CAFÉ, EU NÃO VOU NEM TOCAR EM TI, EU SÓ QUERO QUE TU ME DIGA OLHANDO PRA MIM, SABE, OLHANDO NOS MEUS OLHOS...
Nesse ponto, o sinal abriu e a vida seguiu o fluxo do trânsito. Acompanhei o carro do Sérgio por mais algumas quadras até que o perdi definitivamente de vista. Sérgio e sua encruzilhada amorosa. Sérgio e seu indiscreto rádio com Bluetooth.
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Senhora idosa segurando bolsa, sacola e bengala. Paro o táxi com a porta traseira bem na sua frente, mas ela insiste em sentar no banco da frente.
- Até o shopping, bah, que umidade bárbara, Deus que me perdoe, haja saúde pra aguentar essa molhaçada, as roupas úmidas, os meus pés estão gelados...
- Bom dia, a senhora tem que pôr o cinto.
- As coisas não secam, esse tempo miserável, a gente fica pestiada, tô com uma tosse, cof, cof, cof..
- O cinto, senhora.
- Minha cabeça parece que vai estourar, com essa umidade, ainda não consegui dormir direito, pois tenho um rapaz do apartamento ao lado do meu, vizinho de porta, que bota a tv a todo volume, passa a noite toda vendo tv, não sei, acho que dorme durante o dia.
- O cinto, o cinto.
- Eu já reclamei pra síndica do prédio...
- O CINTO!
A velhinha, então, começa a tentar passar o cinto em meio a bolsa, sacola, bengala, casaco e continua falando:
- A miserável da síndica só pensa em folhagem, em arrumar os canteiros do edifício, esse mês veio uma chamada extra, serviços de jardinagem, onde já se viu...
- Deixe eu lhe ajudar com o cinto, me alcance a fivela, por favor.
- Eu já disse que não vou pagar, é só pagar, pagar, pagar, apareceu uma conta de telefone esse mês, tô indo na loja da Vivo, no shopping, não vou pagar, um absurdo...
- A senhora tem que passar o cinto, senhora, o cinto, levante a bengala, passe o cinto, tem que afivelar senão fica apitando, o cinto.
- Meu filho é advogado, ele disse pra ir na Vivo, tentar um acordo, meu filho entra com processo...
- Levante a sua bolsa, senhora, passe o cinto.
- Essa gente dessas empresas pensam que a gente é boba, mandam a conta, se colar colou...
- O cinto, aqui, passe por aqui, o cinto trancou na bengala, senhora.
- Meu vizinho de porta, não sei como assiste tanta tv, eu não suporto televisão, Faustão, novela, não assisto, não quero saber de folhagem, queria só que minha roupa secasse no varal, essa umidade terrível...
Nesse ponto eu desisto de pôr o maldito cinto e sigo até o shopping ouvindo o falatório da velha e o sinal sonoro do cinto de segurança pi, pi, pi, pi, pi, pi, pi, pi...

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