Cair da tarde, um temporal se armando, relâmpagos, trovões, eu manobrando o táxi em um beco complicado, altos da Conceição Degolada, zona conflagrada, tensa, uma moto para de repente, freada brusca, quase encosta na porta do táxi, o motoqueiro bate no vidro, faz sinal para que eu abra a janela, o dia virando noite, a chuva chegando, o motoqueiro, o beco estreito, a escuridão, o medo, já era, vou morrer, o olho arregalado, coração acelerado, assalto, pânico, baixo o vidro, já vendo o dinheiro, o celular, pode levar tudo, mas o motoqueiro parece perdido:
- Amigão, sabe onde fica a mulher que faz aborto aqui na vila?
- Ã? quê? Aborto? o quê?
- Tu conhece aqui? A velha que faz aborto, tu sabe? conhece?
- Velha? Não, não, só tô largando uma corrida... não, não sei… eu...
- Putz, deixa pra lá.
- Ã? quê? Aborto? o quê?
- Tu conhece aqui? A velha que faz aborto, tu sabe? conhece?
- Velha? Não, não, só tô largando uma corrida... não, não sei… eu...
- Putz, deixa pra lá.
O motoqueiro acelera, engata a marcha, só então percebo a garota na garupa da moto, ela está agarrada à cintura do rapaz, pelo vão do capacete, por uma fração de segundo, é possível notar seus olhos miúdos, angustiados, uma fração de segundo, o olhar da menina parece procurar respostas, onde eu estou metida?, o motoqueiro, a menina, a velha aborteira, não sei, estou só manobrando o táxi, a chuva cai pesada, o dia vira noite, o motoqueiro arranca, eu acelero, relâmpagos, a moto desce o beco, procuram a velha, procuram respostas, eu solto a respiração, trovões, procuro entender, procuro a saída, volto pro asfalto, desligo o rádio, desligo o taxímetro, respiro fundo, por hoje chega.
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