Duvido que algum taxista lembre de uma corrida que fez há vinte anos. Poucas lembranças sobrevivem a tanto tempo - quanto mais nesse opaco amontoado de recordações no qual se transformou minha memória. Não vou dizer que lembro em detalhes daquela corrida, mas recordo bem do clima, de uma certa atmosfera, digamos, pesada, contemplativa - talvez inevitável quando se está na presença de alguém que vê a sombra da morte aproximando-se. Tanto eu, taxista, quanto meu passageiro sabíamos que aquela poderia ser a última corrida de táxi de tantas que tínhamos feito naqueles meses. Muitas idas para o hospital. Ele soropositivo, eu seu fã.
Portadores do vírus HIV tinham um fim de vida difícil nos idos de 1996. O coquetel ainda estava por vir, o tratamento ainda incluía nefastas sessões de quimioterapia, pacientes adquiriam pouco a pouco um emagrecimento excessivo, uma palidez cadavérica. Impossível não notá-los circulando (quando tinham coragem de sair à rua). Meu passageiro parecia não se incomodar - pelo menos, tentava não demonstrar-se incomodado com as inevitáveis avaliações de canto-de-olho. Lembro perfeitamente de vê-lo atravessando a Getúlio Vargas, altivo, esguio, a bandana na cabeça, quase flanando em direção ao ponto de táxi. Aos olhos dos meus colegas, o homem era um condenado; de minha parte, torcia para que escolhesse meu táxi (que estava no meio da fila) como fazia desde que descobriu o improvável gosto pela literatura deste taxista.
Esta última corrida que fez comigo foi diferente. Não fomos direto para o hospital, como de costume. Avisado por mim que alguns outdoors divulgavam pela cidade o lançamento do seu livro, mostrou-se curioso, pediu que eu o levasse até um desses anúncios. Lembro que estacionei o táxi na Felipe de Oliveira, ao lado do ginásio da brigada. Ele ainda não era meu escritor preferido (eu costumava ler best-sellers americanos), talvez tenha se tornado naquele momento. Lembro bem que não sentiu-se lisonjeado com o anúncio, que lamentou a estratégia oportunista de divulgar um autor à beira da morte. Só faltou colocarem ao lado do seu nome, entre parênteses (aquele que está morrendo de aids). Ou talvez não fosse nada disso, talvez fosse uma avaliação um tanto severa de quem não se importava com mais nada - e ele não parecia se importar. Das poucas coisas que lembro daquela corrida, ficou a sensação de uma certa acidez nos comentários, uma revolta por trás da generosidade. Meu ilustre passageiro estava ainda mais diferente do que sempre fora.
Vinte anos depois daquela corrida, estou relendo Pequenas Epifanias, livro que contém uma carinhosa dedicatória assinada por Márcia Abreu, de quem ganhei o livro, na qual me agradece por ter “compartilhado um pouco daqueles tempos difíceis” com seu irmão Caio Fernando Abreu. O inesquecível Caio F.
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