O céu parecia estar vindo abaixo quando parei o táxi para pegar aquela corrida. Uma chuva pesada desabava sobre a cidade, o dia virou noite, o limpador não dava conta. Saindo de um prédio acanhado, surgiu um casal. O homem, manejando um guarda-chuvas torto, procurava proteger a mulher que trazia uma criança no colo. Encostei o carro o mais que pude e abri a porta. Era muita chuva, os passageiros embarcaram molhados, só a criança parecia protegida no colo da mãe.
À medida que partíamos, pude reparar melhor no casal. A mulher, apesar de molhada, parecia alinhada, bem vestida. O homem, gordo, jaqueta de couro e costeletas enormes tipo Volverine. O que parecia ser uma criança no colo da mulher, na verdade era uma… boneca. Minha exclamação escapou automática:
-- Uma boneca!
Senti que o homem ficou sem graça. A mulher, por sua vez, abriu um sorriso largo, balançou o bracinho da boneca, pediu que a “Luci” me dissesse olá, agia como uma criança que ganhou o brinquedo a pouco.
Paramos em um primeiro endereço onde a boneca foi deixada com uma idosa. Seguimos mais um pouco e foi a vez da mulher descer no prédio onde trabalha. Ela despediu-se do marido Volverine com um selinho. Ele pediu que eu tocasse adiante.
Pelo resto da corrida, o homem me contou uma história estranha, absurda. Ele afirmou que sua filha de 4 anos havia morrido em um acidente de trânsito. O carro, dirigido por sua esposa, colidiu com um caminhão. A mãe não teria assimilado totalmente a perda da filha. Desde o acidente, a mulher tratava a boneca preferida da garota como se fosse uma criança. Trocava fraldas, contava histórias, colocava para dormir. A sogra tinha que cuidar da boneca enquanto ela trabalhava. A terapia não estaria funcionando.
Terminada a corrida, o gordo Volverine não esperou comentários, pagou o que devia e saltou do táxi sem se importar com o granizo, com os raios, com o céu vindo abaixo. A chuva parecia o menor dos seus problemas.
2 comentários:
Complicada a vida. Numa situação destas, descrita em poucas palavras, podemos ver que muitas vezes os nossos problemas que parecem imensos,na verdade são pequenininhos comparado com os das outras pessoas.
Uma frase revela bem sobre o taxista e escritor que estamos lendo, mais do que um profissional competente, um ser humano preocupado com as pessoas e não apenas com a féria. Depois de informar que caía uma chuva pesada sobre a cidade e de que parou para pegar a corrida, acrescentou: "Encostei o táxi o mais do que pude e abri a porta". Outros sequer abrem a porta e ainda reclamam se o passageiro demora. Mauro Castro dignifica a classe dos taxistas e brilha na dos escritores.
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