domingo, 6 de janeiro de 2013

Baunilha e chocolate

Não sei se os verões estão cada vez piores ou é minha intolerância ao calor que vem aumentando. O fato é que Porto Alegre anda ardendo em brasa. Nesse dia, no entanto, depois de derreter os pneus pelas ruas da cidade, eu estava finalmente indo passar o táxi para o motorista da noite.

Na esquina da João Pessoa com a Ipiranga, a EPTC realizava uma ação de educação para o trânsito. Colocaram à margem da avenida uma placa com a mensagem “Dirigiu e bebeu”. Logo a seguir, uma homem coberto por sacos pretos rasgados, segurando uma foice.

A morte.

Danilo, meu parceiro da noite, já me esperava na pracinha da Azenha onde fazemos a troca de turno. Comentei com ele sobre a ação da EPTC, que eu achara um tanto chocante. Meu colega, então, apontou para um boteco em frente à praça. Mandou que eu desse uma olhada atrás da viatura da polícia. Aquilo sim era chocante.

Depois de entregar o táxi, fui até o boteco. Normalmente passo por ali mesmo. Nos dias de calor, um rapaz vende sorvetes na porta do estabelecimento. Um camburão estava atravessado em frente à máquina de sorvetes. Sentada em uma cadeira, na calçada, do lado de fora do boteco, junto ao sorveteiro, uma senhora jazia morta. Por falta de um lençol, estava tapada com um plástico transparente, à espera da perícia.

Dois homens que apreciavam a cena mórbida comentavam que ela sentiu-se mal, pediu para sentar e morreu. Parecia estar ali há um bom tempo, pois já não chamava mais a atenção. Em segundos, os homens deixaram o local comentando a contratação do técnico Dunga.

Olhei para o garoto do sorvete. Ele estava ali parado, tentando ganhar a vida, apesar de tudo, postado entre a viatura e a cadeira, tentando obstruir a incômoda visão da morta, que atrapalhava os negócios. Ao me ver, perguntou se eu compraria um sorvete.

Peguei uma casquinha mista e saí filosofando com meus botões. O que seria a vida, senão um misto de doce e amargo, nascimento e morte? Baunilha e chocolate.

4 comentários:

Inaie disse...

dificil tentar entender a morte...eud esisti há muito tempo!

Ricardo Mainieri disse...

O pensamento sobre a nossa finitude é um daqueles que tentamos, sem sucesso, evitar.

Já fui mais resistente a ele, mas com minha adesão ao espiritualismo ficou mais fácil compreender a morte como um fenômeno de transição.

O corpo físico, naturalmente, fica aqui pela Terra, mas nossos sentimentos e pensamentos que constituem outros corpos sutis vão esperar um momento outro para retornar a este jardim de espinhos para cumprir mais uma etapa no aprendizado do amor, da bondade, da compreensão.
Isto me conforta.

Abs.

Ricardo Mainieri

Sergio LB disse...

Parabéns Ricardo Mainieri. Belo e sensível texto. Tem muito a ver com o que reflito sobre a nossa existência terrena...

É, Mauro... O teu blog oportuniza a apreciar e a imaginar a 'baunilha e chocolate', como a refletir sobre os demais 'sabores' que a vida nos oferece.

Dalva M. Ferreira disse...

Eita texto bonito e profundo!