domingo, 15 de agosto de 2010

O peso de uma culpa

Quando a passageira embarcou, estranhei sua aparência. Cliente antiga do ponto, conhecida por sua vaidade, naquele dia ela estava desleixada, triste, visivelmente abatida. Seu penteado, mantido a várias visitas semanais ao cabeleireiro, estava desarmado, o que a deixava quase irreconhecível. Destino da corrida: um hospital.
Não foi preciso perguntar o que estava acontecendo, logo ela começou a relatar seu drama. Estava indo ao hospital visitar o irmão, que se recuperava de uma complicada cirurgia. Depois de ter a perna amputada, por um problema de má circulação, o homem estava recuperando a consciência. Desde então, começou o pesadelo de minha passageira.
Segundo ela, meses atrás, o irmão começou a sentir dores no pé, que foram subindo por toda a perna. Depois de consultar no litoral, onde mora, os médicos o mandaram para a capital, pois tratava-se de um problema grave. Aqui, ele passou a ser acompanhado por sua irmã, minha passageira, que é seu único parente próximo.
A doença foi se agravando e os médicos tiveram que recorrer a uma cirurgia de emergência para amputar a perna. Como, nesse ponto, o paciente já estava inconsciente, foi pedido que ela, a irmã, assinasse a autorização para a operação. Sem opções, ela assinou.
O problema é que, depois que voltou a si, o homem ficou revoltado com a amputação e culpa minha passageira pela perda da sua perna! A ponto de sequer deixar que ela entre no quarto para visitá-lo. Descontrolado, ameaçou, inclusive, processá-la judicialmente.
Foi um longo e comovido desabafo. Aos prantos, minha passageira confessou que não dorme mais direito. Quando pega no sono, tem pesadelos terríveis com a perna do irmão.
Chegando ao hospital, depois de desculpar-se por incomodar-me com seus problemas, ela pagou a corrida e se foi cabisbaixa, esmagada pelo peso de uma culpa que não é sua.

15 comentários:

Caminhante disse...

Tadinha. É que o irmão dela está em processo de negação. Um dia ele se dá conta do que aconteceu e pára de culpá-la. Mas a dor desse momento nada apaga.

Anônimo disse...

Ótima crônica social/urbana, como sempre!
Gostei de ver os últimos 5 seguidores, amigos do Varal!

Forte abraço, e o frio e tempo feio me fizeram voltar no sábado cedo, para o FRIO, mas um tempo lindo de Sol, aqui na Piacaba!
Mais uma vez, MUITO obrigado pela acolhida em Porto Alegre! Recomendo a todos seus leitores forasteiros, que o procurem em visitas à cidade! Não há pessoa melhor para mostrar, falar e contar Porto Alegre!
Bom Domingo!

Dona Sra. Urtigão disse...

Por indicação do Eduardo é que cheguei aqui e andei lendo até...lá embaixo. essas cronicas são sempre ótimas, mesmo quando revelam dramas.

Dona Sra. Urtigão disse...

Por indicação do Eduardo é que cheguei aqui e andei lendo até...lá embaixo. essas cronicas são sempre ótimas, mesmo quando revelam dramas.

Sylvio de Alencar. disse...

1) Acordar o paciente e perguntar À ELE!
2) Esperar até o ÚLTIMO minuto, para assinar.
3) Cadê a p*rra da equipe médica que o operou, e/ou o médico que o diagnosticou e a fez assinar????

Se ela carrega um peso, ou se o carregará pro resto da vida, é, ou será, por ignorância dela. De qualquer forma, esperemos que um dia caia a ficha dela; assim como caem as nossas.

Abração.
Ótemo conto, ou, 'conto'!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

ricardo GAROPABA blauth disse...

alo MAURO

acabei de encomendar dois livros teus na "estantevirtual" ....sebo eletronico.
quando recebe-los vou a PA para compartilhar experiencias ....e claro para autografares os livros.

abrs

ricardo GAROPABA blauth

Carolina Clemens disse...

Que situação heim? Coitada da mulher, ela tinha que fazer alguma coisa, e a única a fazer era assinar e não deixar que a doença se espalha-se pelo corpo do irmão, que certamente teria consequências maiores se ela não permitisse a amputação.

Ricardo Mainieri disse...

Os dramas, também, rendem boas crônicas.
A culpa e o remorso são fardos bem pesados de carregar.
A vida, por vezes, nos põe nestas encruzilhadas.
Talvez o tempo apague esta desavença. Talvez só na outra encarnação...

Abraço.

Ricardo Mainieri

Anônimo disse...

Quem sabe depois da revolta e da fase de negação ele encontre o caminho da aceitação.
É muito comum procurar um responsável pelos nossos erros. Se eu pudesse diria a ela que só se pode ajudar alguém até o nosso limite e até que a pessoa aceite ajuda. Depois disso não há chance.
É preciso que o tempo aja.
Abraço.

**** disse...

Que foda, hem! Pensei num monte de coisas pra comentar, mas acho que tudo que pensei seria hipocrisia. Ela é irmã, o ama, e ele teve uma parte arrancada. Muito foda a situação.
Abraços!

**** disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
tesco disse...

Já senti a perna pesada mas, o peso da perna do irmão deve ser bem maior do que isso, para ela (a passageira, não a perna).
Estarei sorteando outro "Taxitramas" lá no "tescoaqui", é um livro muito bom e o recomendo aos meus leitores.
_Abraço.

Leika Horii disse...

Ele (o irmão) precisava de alguém para culpar. Complicado.
Abraço

Giane disse...

Oi, Mauro.

No fundo, ele sabe que a culpa não foi dela. Está muito triste por ter perdido um membro. Acredito que com o tempo, tudo vai se resolver.
Ela precisa ser forte e tenho certeza, ambos vão superar essa fase triste.

Beijos mil!!!

Eliana disse...

Situação difícil essa!

Mas como tudo nessa vida, "isso também passa"... (palavras de Emmanuel ao Chico Xavier)...